por Arnaldo Antunes
As palavras que Mana Bernardes desenhescreve não são só palavras. Apresentam uma dança; eco do gesto da mão. Quando elas se aglomeram nos limites da folha (parecendo querer vazar para fora dela), o bloco de escrita vibra como folhas de uma árvore que vibram ao vento. Num tempo em que tudo se faz cada vez mais rápido, o apuro desses traçados opera uma ressensibilização da escrita. O sentido das palavras passa a depender de sua realização manual, assim como a voz também ressignifica as palavras no canto. Às vezes a compreensão é fluente e imediata, mas às vezes temos que nos deter para decifrar. Assim, alternamos a velocidade da leitura, que acelera ou ralenta para acompanhar o fio do discurso. Quando nos deparamos com algum caroço de difícil decodificação, nossa atenção se volta para os aspectos sensoriais dessa escrita — uma letra que se alonga até a próxima, um vocábulo que se parte em dois no corte do papel, uma frase de palavras amalgamadas, um alinhamento deslocado, uma mudança de escala, uma letra que salta pra fora do contexto, ou treme com a repetição dela na linha de cima.
Dança de letras que se justapõe à linearidade da sintaxe, possibilitando leituras fragmentárias de palavras que saltam aos olhos sem ordem definida, sugerindo outros possíveis sentidos, para além dos textos que sustentam. Ao mesmo tempo, grande parte desses textos é narrativa, construída pelos mesmos instante-gestos que as desordenam para gritar sua presença em tempo-espaço, ritmo, movimento. Em um deles, o relato começa na terceira pessoa e depois passa para a primeira, como se a personagem fosse nascendo por meio da escrita, até incorporar de vez, assumindo voz própria. “A mulher do oco sem fim”. “A combinada de mar e atordoada de resto”. “A costureira de desalinhos”. A “que vendia vodka escondida no meio das saias lá na Ucrânia”. Não há como não associar essa presença constante do feminino na prosapoesiamanuscritura (aqui essas bordas borram) de Mana, à sua maneira tão singular de grafar manualmente as palavras, lembrando as tradições de bordadeiras, costureiras, tecelãs de linhas e tecidos (ela mesma, Mana, artesã de joias e ideias).
“Vou como um cavalo embora seja mulher.” Aqui a escolha das palavras, sua inflexão, o tom do discurso, a pontuação, tudo ocorre por meio do desenho manual de cada letra no papel. “Vou para onde a caneta me levar.” A sobreposição de transparências, o tipo e o tamanho de cada papel (amassado, milimetrado, envelope pardo rasgado) e de cada lápis ou caneta é incorporado expressivamente e insere diferentes formas de ler — seguindo o fluxo das linhas, obsessiva ou pausadamente, ou colhendo palavras que saltam do meio da massa informe de texto. Mana passeia livremente da narrativa à reflexão, do rascunho de um ensaio ao projeto de uma instalação, de um jogo poético à anotação de um exercício educacional — tudo se mistura porque cada coisa é extensão de outra em sua produção. Como seu texto se funde à caligrafia, suas joias se estendem à embalagem, ao material que recicla, à atitude de quem as modela sobre a pele. Assim também os erros, manchas, garatujas, riscos e correções revelam o processo, a gênese de sua concepção e confecção, transformando o rascunho em produto final.
O resultado é que o verbal se poetiza por meio do código visual. Não é uma poesia em versos. Tampouco reproduz o não verso dos concretos. Não é só prosa, apesar de ter narrativa. Não tem estrofes, métrica ou pontuação. Manchas de discursos se moldando aos limites materiais do papel. E, no entanto, se faz poesia, sim, capaz de: “agradeço aos detalhes por se prenderem ao meu olhar”; “me esperei em você”; “como pedra olhei fixo, mas as borboletas passaram”; “perder o oco e achar a linha”; “o desengonço ficou buscando roupa”; “sai de mim, história”; “sua voz era baixa e seu olhar era longe”; “atrás do todo dia”; “um silêncio muito grande fazia até as nuvens pararem” (não resisto a citá-los, apesar de quase me sentir cometendo um insulto, ao transpor esses trechos de seus escritos para os tipos digitais dessa era pós-gutemberguiana, como se separasse corpo de alma).
Como Arthur Bispo do Rosário, Gentileza, ou o Waly Salomão dos Babilaques, Mana criou um alfabeto próprio, que mantém um padrão básico, com variações de extensão, espessura, curvatura, ângulo, tamanho e disposição das letras. Com esses instrumentos, sugere ritmo e movimento, ligando a visão à percepção tátil. Com delicadeza ou voracidade (do “escrevo cada letra com medo e quando a palavra acaba me encorajo e outra vem” ao “vou para onde a caneta me levar”), Mana Bernardes instaura uma dimensão de afeto à linguagem verbal — “no ápice de um vocabulário, encontrar as palavras e trazê-las num berço para aconchegar os signos” — que nos reeduca a ler, para reaprendermos a ver.
Arnaldo Antunes é poeta, músico, escritor e artista plástico.