por Heloisa Buarque de Hollanda
Eu me assustei com a poesia de Mana Bernardes. Há mais de trinta anos como crí- tica de poesia, dentro e fora da universidade, fiquei ao mesmo tempo fascinada e paralisada diante dos textos da poeta. Pouco a pouco, fui entendendo o porquê. É difícil considerar a poesia de Mana como um fato simplesmente literário. Seu texto é, sem dúvida, belo, bem construído, e mostra um claro talento lírico e filosófico. Mas isso não basta. Fica claro para mim que essa poesia não se esgota no texto. Há um quê de plasticidade que invade e domina tanto as imagens dos poemas quanto sua realização caligráfica. Uma realização que não respeita as separações clássicas de palavras e ora se faz escultura, ora um fluxo contínuo e nervoso de letras e símbolos, ora nos leva a uma viagem por curvas às vezes envolventes, às vezes perigosas. Mas ainda tem mais. As letras e seu desenho inesperado não prescindem de suportes também carregados de significação e magia. É um papel finíssimo, ou encorpado, ou com cores leves ou com uma luminosidade agressiva- mente branca. Pentimentos poéticos. O texto, as letras, o papel, o traço da caneta ou do lápis pesquisados, de forma exaustiva, em suas possibilidades de textura, brilho, opacidade, ranhuras. O espanto e o encantamento por ver o fato poético ganhando vida e ultrapassando os limites do texto formal. Ao mesmo tempo, é bastante claro que essa é uma poesia para ser lida e se afina ainda mais quando acompanhada por sons instrumentais. Foi isso que vi e ouvi no lançamento de seus poemas impressos nas peças da grife uma, de São Paulo. Um banquinho, um som e Mana, translúcida ela mesma, lendo em sotto vocce o texto anotado em infinitos fragmentos de papéis, rolos, cartazes.
Intrigada, fui entrevistar a poeta. Primeira pergunta: por que o nome Mana? Pri- meira resposta: Mana, no universo indígena, quer dizer a magia contida nos objetos. Há objetos que possuem ou não possuem mana. Seria coincidência? Ou eu estava apenas fechando as peças de um quebra-cabeças? A entrevista prosseguiu por um bom tempo em um domingo à tarde, mas não vou reproduzi-la aqui. Dela, entretanto, ficaram alguns pontos esclarecedores. Mana começa o trabalho com a joalheria, muito cedo, aos 7 anos e logo percebe que não há criação (ou, no nosso caso, poesia) sem pesquisa e sem metodologia, esses sim o verdadeiro eixo criativo da grande arte. O ambiente próximo, à sua volta e alcance, descobre-se precioso. Sementes, retalhos, conchas partidas, escamas de peixe, sobra industrial, o universo dos cadernos esco- lares com a potência de suas fantasias e o prazer da caligrafia. Como quem não tem escolha, Mana investe em tudo. Torna-se profissional aos 12 anos, já com produtos distribuídos em lojas e grifes de prestígio. Aqui também o que Mana faz são apenas joias? Ou seriam interpretações poéticas e pessoalíssimas de seu entorno? Leituras radicais “da magia que emana dos objetos”? Novamente a pesquisa de materiais e a metodologia de utilização e recriação desses materiais são sua poética. Observo sua produção de joias recente mais de perto. Percebo textos esparsos em nomes de peças, embalagens. São os poemas que acabara de ler nos seus papéis. Coincidência de novo? A poesia é a dominante. Parece não poder se separar das diversas práticas artísticas de Mana. Poemas flutuando dentro de joias, poemas sugerindo imagens no espelho, poemas inscritos em linha e seda, em roupas e acessórios. Poesia como método em sua intensa atividade pedagógica em ongs e cooperativas. Poesia na superfície do papel branco. Enganosa. Como se fosse igual a todos os outros poemas de tantos outros poetas que passaram por nós.
É a partir do espanto e da admiração que tive de imediato, já no meu primeiro contato com a obra de Mana Bernardes, que estou totalmente seduzida pela pos- sibilidade de trabalhar a publicação – obrigatoriamente sutil e inventiva – de seus trabalhos na minha área de afeição que é a poesia.
Heloisa Buarque de Hollanda é escritora, professora de teoria crítica da cultura da ufrj e diretora da Aeroplano Editora e Consultoria Ltda.